Thursday, June 30, 2005

nunca ninguém se perdeu.
porque tudo é verdade e caminho.

F. Pessoa

Wednesday, June 29, 2005

Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.

Sophia
Não te ofenderei com poemas
Param os meus olhos quando penso em ti
Não farei do meu remorso um canto
Com árvores e céus mas sem poemas
Demasiado humano para poder ser dito
O teu mundo era simples e difícil
Quotidiano e límpido

Sophia

a invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura
A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.

daniel filipe

o teu rosto

É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.

Sophia Melo Breyner Andersen
"Se os seus sonhos estiverem nas nuvens,
não se preocupe, pois eles estão no lugar certo.
Agora, construa os alicerces."

Shakespeare

luiz fernando veríssimo

Não deixe que a saudade sufoque,
que a rotina acomode,
que o medo impeça de tentar.
Desconfie do destino e acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando,
fazendo que planejando,
vivendo que esperando porque,
embora quem quase morre esteja vivo,
quem quase vive já morreu.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
Herberto Helder
quero querer muito.

Sunday, June 26, 2005

não fui margem sem outra margem onde ligar os braços
mas fui o tempo solto para entrançar os meus cabelos
e o movimento dos teus pés descalços

não gui a solidão inteira nem reclusa
para o único repouso entre o silêncio
nem fui a flor exausta defendendo-se
de toda a mão que quis despetalar

não fui casa que a si mesmo se abrigou
nem a morada que nunca se acolheu
mas o tempo a pedir que me deixasse

naquilo que não fui vim encontrar-me
e sempre que te vi recomecei

daniel faria
sei bem que não mereço um dia entrar no céu
mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra

daniel faria
houvesse um sinal a conduzir-nos
e unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. termos das árvores
a incomparável paciência de procurar o alto
a verde bondade de permanecer
e orientar os passáros.

daniel faria
(...)tudo
o que eu sou é
distância.
(...)
aquilo que me une
é um rumor.
não descanso. sou urgência
de outro sítio.

daniel faria
se fosses pássaro baterias as asas para destruir a armadilha
se fosses insecto deixarias círculas apenas ao redor da luz
se fosses abelha farias zumbiar a revolt
mas és voo pela sombra
se fosses formiga carregarias a ordem, armazenarias a fadiga
se fosses flor plonizarias a terra
serias coroa inrorruptível
se fosses flor através das estações

daniel faria
eugénio de andrade foi enterrado de pijama e sapatos de quarto, dizem os jornais.
ainda não sei bem o que pensar, mas sei o que sentir: gosto.

Saturday, June 25, 2005

Daniel Faria

o meu novo amigo chama-se daniel faria.
é maravilhoso.
quer ele, quer o seu apelido.
adoro como as línguas nos falam (não são só as palavras que nos beijam, sr. O'Neill, a língua também!). Faria, verbo fazer no presente do condicional.
Faria, porque não faz.
Faria, porque o faço eu por ele.

um amigo. ou uma amiga. ou um amigo e uma amiga.

poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
ter escrito com o sangue.
também poderia ter escrito as visões
se os olhos divididos em partes não sobrassem
no vazio da ceguez
e luz.
poderia ter escrito o que sei
do futuro e de ti
e de ter visto no deserto
o silêncio, o fogo e o dilúvio.
de dormir cheio de sede e poderia
escrever
o interior do repouso
e ser faúlha onde a morte vive
e a vida rompe.
e poderia ter escrito o meu nome no teu nome
porque me alimento da tua boca
e na palavra me sustento em ti.

daniel faria
quero saltar para a água
para cair no céu.

pablo neruda, crepusculário

mia couto

ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.

conselho de avô

Monday, June 13, 2005

morreu hoje o homem que pregava a urgência do amor.
e o homem que pregava a urgência da revolução.

e agora?
será o amor à revolução?
a revolução do amor?
a urgência da urgência?
vinda.
vida.
benvinda.
benvida.

vem, vida.

o meu primeiro post

não quero viver os textos dos outros.
quero amar.
quero o mar.

A meu favor

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
o tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
as paredes que insultam devagar
certo refúgio acima do murmúrio
que da vida corrente teime em vir
o barco escondido pela folhagem
o jardim onde a aventura recomeça.

Alexandre O'Neill

Sunday, June 12, 2005

Bom conselho

Ouça um bom conselho
que lhe dou de graça
é inútil dormir que a dor não passa.

Espere sentado
ou você se cansa
está provado, quem espera nunca alcança.

Venha, meu amigo
deixe esse regaço
brinque com meu fogo
venha se queimar.

Faça como eu digo
faça como eu faço
aja duas vezes antes de pensar.

Corro atrás do tempo
vim de não sei onde
devagar é que não se vai longe.

Eu semeio o vento
na minha cidade
vou p’ra rua e bebo a tempestade.

Chico Buarque

Tatuagem

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava.

Eu quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo te alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousa frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço.

Eu quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem

Eu quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo mas não sentes.

chico buarque
c'est insensé, dit la raison.
c'est impossible, dit la expérience.

c'est comme ça, dit le coeur.

Thursday, June 09, 2005

"se não tens rumo, nenhum vento te será favorável"
Séneca

Monday, June 06, 2005

Sempre que alguma coisa me corre mal, ou então, como acontece com frequência nos dias escuros, sempre que me acho mais céptico em relação à humanidade, lembro-me do estranho objecto que descobri ao visitar um centro de recuperação de mutilados, em Viana, pequena cidade nos arredores de Luanda. Pensei primeiro que fosse uma obra de arte moderna, confusa colagem de ferros retorcidos que vagamente, muito vagamente, deixava adivinhar a forma de uma perna humana. Um enfermeiro seguiu o meu olhar: “é uma prótese”, explicou, “ou melhor, foi uma prótese”.
Contou-me que alguns meses antes tinha aparecido ali um velho camponês. Caminhara desde uma remota aldeia do norte usando em lugar da perna direita o extraordinário aparelho. A perna, perdera-a no princípio dos anos 70, quase quatro décadas antes, ao pisar uma mina socorrido por soldados portugueses recebera uma prótese de alumínio e regressara a casa. A prótese quebrara-se várias vezes e ele mesmo a consertara, pacientemente, com arame farpado, cintas de obuses, ferro velho, enfim!, o que estivesse mais à mão, até ao fantástico estorvo atingir os 25 quilos de peso. Quando, no centro de recuperação de mutilados lhe entregaram a nova prótese o homem (contou-me o enfermeiro) sorrira radiante: “agora”, dissera baixinho, como se revelasse um segredo, “posso dançar outra vez”.

José Eduardo Agualusa

dignidade profissional

Eu sou um carácter forte. Sei dominar-me.
Não o deixava transparecer, mas estavam em jogo o trabalho de longos anos, o reconhecimento do meu talento, todo o meu futuro.
- Sou um artista imitador, disse.
- O que é que sabe imitar?, perguntou o director.
- Imito o canto dos pássaros.
-Infelizmente, fez um gesto de renúncia com a mão, isso já passou de moda.
-Como? O arrulhar da rolha? O chilrear do milheiro nos caniçais? O gorgejo da codorniz? O grito da gaivota? O cantarolar da cotovia?
-Passou, disse o director aborrecido.
Aquilo magoou-me. Mas acho que não o mostrei.
voar
-Adeus, disse eu com cortesia, e saí a pela janela aberta.

Istvan Orkeny.