inventei a dança para me esconder.Ébria de solidão eu quis viver.E cobri de gestos a nudez da minha almaPorque eu era semelhante às paisagens esperandoE ninguém me podia entender.Sophia de Mello Breyner
Sunday, January 02, 2005
Escuta, escuta: tenho aindauma coisa a dizer.Não é importante, eu sei, não vaisalvar o mundo, não mudaráa vida de ninguém - mas quemé hoje capaz de salvar o mundoou apenas mudar o sentidoda vida de alguém? Escuta-me, não te demoro.É coisa pouca, como a chuvinhaque vem vindo devagar.São três, quatro palavras, poucomais. Palavras que te quero confiar.Para que não se extinga o seu lume,o seu lume breve.Palavras que muito amei,que talvez ame ainda.Elas são a casa, o sal da língua.Eugénio de Andrade
XIV Tenho o nome de uma flor
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu seise sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.
Eugénio de Andrade
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu seise sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.
Eugénio de Andrade
CASA NA CHUVA A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.Não sei porque voltou esta tardese minha mãe já se foi embora,já não vem à varanda para a ver cair,já não levanta os olhos da costurapara perguntar: Ouves?Oiço, mãe, é outra vez a chuva,a chuva sobre o teu rosto.Eugénio de Andrade
O SORRISO
Creio que foi o sorriso, 0 sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz lá dentro, apetecia entrar nele, tirar a roupa, ficar nu dentro daquele sorriso. Correr, navegar, morrer naquele sorriso. eugénio de andrade
Creio que foi o sorriso, 0 sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz lá dentro, apetecia entrar nele, tirar a roupa, ficar nu dentro daquele sorriso. Correr, navegar, morrer naquele sorriso. eugénio de andrade
O LUGAR DA CASA
Uma casa que fosse um arealdeserto; que nem casa fosse;só um lugaronde o lume foi aceso, e à sua rodase sentou a alegria; e aqueceuas mãos; e partiu porque tinhaum destino; coisa simplese pouca, mas destinocrescer como árvore, resistirao vento, ao rigor da invernia,e certa manhã sentir os passosde abrilou, quem sabe?, a floraçãodos ramos, que pareciamsecos, e de novo estremecemcom o repentino canto da cotovia eugénio de andrade
Uma casa que fosse um arealdeserto; que nem casa fosse;só um lugaronde o lume foi aceso, e à sua rodase sentou a alegria; e aqueceuas mãos; e partiu porque tinhaum destino; coisa simplese pouca, mas destinocrescer como árvore, resistirao vento, ao rigor da invernia,e certa manhã sentir os passosde abrilou, quem sabe?, a floraçãodos ramos, que pareciamsecos, e de novo estremecemcom o repentino canto da cotovia eugénio de andrade
Mário Cesariny de VasconcelosYou Are Welcome To Elsinore
Entre nós e as palavras há metal fundenteentre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirardo mais fundo de nós o mais útil segredoentre nós e as palavras há perfis ardentesespaços cheios de gente de costasaltas flores venenosas portas por abrire escadas e ponteiros e crianças sentadasà espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamoshá palavras de vida há palavras de mortehá palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperarhá palavras acesas como barcose há palavras homens, palavras que guardamo seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras noturnas palavras gemidospalavras que nos sobem ilegíveis à bocapalavras diamantes palavras nunca escritaspalavras impossíveis de escreverpor não termos conosco cordas de violinosnem todo o sangue do mundo nem todo oamplexo do are os braços dos amantes escrevem muito altomuito além do azul onde oxidados morrempalavras maternais só sombra só soluçosó espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedadose entre nós e as palavras, o nosso dever falar
*
Em todas as ruas te encontroem todas as ruas te percoconheço tão bem o teu corposonhei tanto a tua figuraque é de olhos fechados que eu andoa limitar a tua alturae bebo a água e sorvo o arque te atravessou a cinturatanto, tão perto, tão realque o meu corpo se transfigurae toca o seu próprio elementonum corpo que já não é seunum rio que desapareceuonde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontroem todas as ruas te perco.
Entre nós e as palavras há metal fundenteentre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirardo mais fundo de nós o mais útil segredoentre nós e as palavras há perfis ardentesespaços cheios de gente de costasaltas flores venenosas portas por abrire escadas e ponteiros e crianças sentadasà espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamoshá palavras de vida há palavras de mortehá palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperarhá palavras acesas como barcose há palavras homens, palavras que guardamo seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras noturnas palavras gemidospalavras que nos sobem ilegíveis à bocapalavras diamantes palavras nunca escritaspalavras impossíveis de escreverpor não termos conosco cordas de violinosnem todo o sangue do mundo nem todo oamplexo do are os braços dos amantes escrevem muito altomuito além do azul onde oxidados morrempalavras maternais só sombra só soluçosó espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedadose entre nós e as palavras, o nosso dever falar
*
Em todas as ruas te encontroem todas as ruas te percoconheço tão bem o teu corposonhei tanto a tua figuraque é de olhos fechados que eu andoa limitar a tua alturae bebo a água e sorvo o arque te atravessou a cinturatanto, tão perto, tão realque o meu corpo se transfigurae toca o seu próprio elementonum corpo que já não é seunum rio que desapareceuonde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontroem todas as ruas te perco.
Herberto Helder
Sobre o Poema
Um poema cresce inseguramentena confusão da carne,sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,talvez como sangueou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo.Fora, a esplêndida violênciaou os bagos de uva de onde nascemas raízes minúsculas do sol.Fora, os corpos genuínos e inalteráveisdo nosso amor,os rios, a grande paz exterior das coisas,as folhas dormindo o silêncio,as sementes à beira do vento,— a hora teatral da posse.E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.Insustentável, único,invade as órbitas, a face amorfa das paredes,a miséria dos minutos,a força sustida das coisas,a redonda e livre harmonia do mundo.
— Embaixo o instrumento perplexo ignoraa espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Sobre o Poema
Um poema cresce inseguramentena confusão da carne,sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,talvez como sangueou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo.Fora, a esplêndida violênciaou os bagos de uva de onde nascemas raízes minúsculas do sol.Fora, os corpos genuínos e inalteráveisdo nosso amor,os rios, a grande paz exterior das coisas,as folhas dormindo o silêncio,as sementes à beira do vento,— a hora teatral da posse.E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.Insustentável, único,invade as órbitas, a face amorfa das paredes,a miséria dos minutos,a força sustida das coisas,a redonda e livre harmonia do mundo.
— Embaixo o instrumento perplexo ignoraa espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.